segunda-feira, 29 de março de 2010

RELAÇÕES INTERNACIONAIS, PODER E POLÍTICA NA ÁFRICA

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE DIREITO
MESTRADO EM DIREITO PÚBLICO

VICTOR INSALI

IIIª SEMANA AFRICANA

LEMA: Dinâmicas Sociais, Políticas e Culturais na Contemporaneidade.

TEMA: Relações internacionais, poder e política na África.

Salvador
2009

SUMÁRIO:
1-INTRODUÇÃO
2-Relações e política da África no período pré-colonial
3-Relações e política da África no período colonial
4-Relações e política da África no período pós-colonial até hoje
5-Conclusão
6-Referências

Victor INSALI[1]

INTRODUÇÃO

Exmª Presidente da Comissão Organizadora da 3ª Semana da África Drª Artemisa O. Candé Monteiro.

Exmº Coordenador de Mesa Dr. N’djaiye

Exmoº Dr.Ricardino Teixeira

Exmoº Lamine Faye Ministro da Diáspora do Senegal

Exmoº Dr. Lívio Sansone

Caros Convidados

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Permitam-me agradecer em primeiro lugar a comissão organizadora deste evento pelo empenho e dedicação na materialização deste magno evento que para nós estudantes africanos aqui presentes tem um simbolismo histórico especial.

25 de Maio hoje Comemorado representa para nós africanos uma data histórica na luta contra o colonialismo em África. Celebramos hoje 46 anos da criação da Organização[2] da Unidade Africana (OUA), criada em 1963, em Addis Abeba (Etiópia). Hoje a OUA foi substituída pela União Africana a 9 de Julho de 2002. Esta organização jogou um papel decisivo na luta pela descolonização da África como podemos ver nos seus objetivos previstos na sua Carta.

·Promover a unidade e solidariedade entre os Estados africanos;

·Coordenar e intensificar a cooperação entre os Estados africanos, no sentido de atingir uma vida melhor para os povos da África;

·Defender a soberania, integridade territorial e independência dos Estados africanos;
·Erradicar todas as formas de colonialismo da África;

·Promover a Cooperação Internacional, respeitando a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos;
·Coordenar e harmonizar as políticas dos Estados membros nas esferas políticas, diplomáticas, econômica, educacional, cultural, da saúde, bem estar, ciência, técnica e de defesa.

Quero muito antes de entrar no tema em debate, relações internacionais, poder e política na África, trazer a tona da discussão, uma questão que para mim merece uma especial atenção. Permitam-me ler esta passagem do texto quanto às questões que tocam muito com a África no que respeita ao seu desconhecimento pela maioria que não são africanos.

Muito se questiona acerca dos problemas em África e possíveis soluções. Compreender aquele continente é tentar auscultar a História e tentar perceber a humanidade e a espécie humana. Saber que as populações que ali vivem têm um passado não-ocidental e, da mesma forma, não sujeito ao modelo de modernidade Europeu/Ocidental já é um grande passo para descortinar uma realidade muito além da compreensão da maioria dos não-africanos. Esta parte do globo engloba diferentes povos de várias culturas, costumes e modos de vidas diferentes, e só quem está dentro de cada realidade cultural vivendo-a é capaz de conhecê-la e interpretá-la. Pois existem muitos africanos embora vivendo em África não conhecem os costumes e muito menos a língua nativa do seu grupo étnico.

Partindo do conceito de relações internacionais, que visam o estudo sistemático das relações políticas, econômicas e sociais entre diferentes “atores” cujos reflexos transcendem as fronteiras de um Estado, isto é, tenham como lócus o sistema internacional.
Entre os atores internacionais destacam-se os Estados[3], as empresas transnacionais, as organizações internacionais e as organizações não-governamentais. As relações internacionais podem-se focar tanto na política externa de determinado Estado, quanto no conjunto estrutural das interações entre os atores internacionais.

Trantando-se de relações entre Estados que se estabelece com base no princípio de igualdade que segundo STRENGER[4] consiste no seguinte:
Todas as relações entre Estados nascem do fato inicial de seu reconhecimento mutuo. Reconhecendo-se mutuamente como soberanos, os Estados se reconhecem como juridicamente iguais no exercício de todas as prerrogativas inerentes a esta soberania: as relações futuras que derivarão desse reconhecimento se apoiarão sobre a base de uma perfeita reciprocidade de direitos e deveres. A responsabilidade dos Estados é, pois na ordem internacional o corolário obrigatório de sua igualdade (STRENGER: 1973 p.50).

O reconhecimento mutuo tem haver também com a idéia da independência[5] de um Estado em relação aos outros, permitindo a afirmação de acordos internacionais. Esse reconhecimento da independência é uma condição fundamental para o estabelecimento da soberania. A independência dos países africanos foi recente datada entre anos 1956 e 1960 e de forma particular as colônias portuguesas na década de 70. A partir deste período os países africanos começaram a exercer as suas soberanias no plano interno e internacional, reconhecidos como estados soberanos e independentes.

A proteção diplomática foi consolidada no século XIX, a partir do aumento dos investimentos dos países europeus e dos Estados Unidos no exterior, que levou os conflitos entre nacionais daqueles Estados e os novos países emergentes, em especial os da África e América Latina. Para CHARLES de Vischer, era necessária a proteção diplomática, já que nesses países não havia instituições sólidas, aptas a prestar justiça. Segundo o autor Belga, “a instabilidade de sua vida pública, comprometeu, muitas vezes, o funcionamento normal das instituições administrativas e judiciárias” (VISSCHER: 1953 p.339).

É verdade que em África a pós a independência houve um período de instabilidade política, porque o grande problema dos países africanos consiste da forma como o poder político foi concebido. O período colonial em África não deixou boa preparação para os africanos de maneira a poderem absorver a democracia. O regime colonial segundo Ki-Zerbo[6] era paternalista e autoritário, ou mesmo totalitário. Enquanto o povo africano submetia e obedeciam os colonizadores , estes aproveitaram-se das estruturas tradicionais da organização dos chefes e dos reinos para implantar o seu próprio poder. Os novos regimes africanos herdaram um sistema autoritário e brutal. A maioria dos dirigentes africanos que tomaram o poder nesse momento não eram verdadeiramente legítimos, não aprenderam a democracia, o que transformou os regimes do multipartidarismo para o monopartidarismo.

Os dirigentes da época tinham medo de serem depostos, e não se dedicaram ao multipartidarismo. Preferiram amordaçar os outros partidos mantendo o monopartidarismo. Este fato criou conflitos internos nesses países pelos sucessivos golpes de estados (KI-ZERBO: 2006 p.62).

As grandes questões da África estão em primeiro lugar na do Estado. O Estado africano mal consegue se formar e já é pressionado por instituições como o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), exigindo que exista uma estrutura estatal cada vez menor, e a influência das empresas multinacionais impõe-se cada vez mais. Neste cenário a África não tinha tempo de criar um tipo de Estado semelhante ao europeu, e como conseqüência a criação dos regimes ditatoriais pelos dirigentes africanos.

Os dirigentes africanos hoje fazem do Estado, um Estado patrimonial ou étnico, que não é um verdadeiro Estado que transcenda os particularismos pelo bem comum. Que tipo de Estado acabará por sair dele?

Na África temos ainda a questão da unidade e da fragmentação, a África deve constituir-se através da integração que deve ser um processo com bases sólidas que permitem erguer as estruturas de produção e fomentar a paz e o desenvolvimento econômico e não uma integração a modelo do que se está vivendo hoje em África.

A África deve procurar pelo seu “ser” para um “ter” e não um “ter” de esmola, de mendicidade. É uma questão de identidade e do papel a desempenhar no mundo. Sem identidade somos um objeto da história, um instrumento utilizado pelos outros, um utensílio.
Segundo Ki-Zerbo, a identidade é como numa peça de teatro, em que cada um recebe um papel para desempenhar, e tem que desempenhá-lo de forma digna e convincente (Ki-Zerbo: 2006 p.12).

E nos estudantes africanos aqui presentes, será que procuramos manter ou ter uma identidade africana da nossa cultura aqui no Brasil?É uma questão que cabe uma reflexão e resposta por cada um de nós. Não podemos contentarmo-nos com os elementos culturais que recebemos do exterior, devemos forjarmo-nos para manter a nossa cultura, nossa língua, pois que ela é o elemento fundamental da nossa identidade. Somos forjados, moldados, formados e transformados através dos objetos manufaturados que vem dos países industrializados com as suas cargas culturais. Devemos lutar muito pela troca cultural eqüitativa.

2-Período Pré-Colonial
A África evoluiu como todos os outros povos do mundo e de maneira progressiva, desde os primeiros agrupamentos humanos da antiguidade Egípcia até ao século XVI, através das chefaturas, dos reinos, dos impérios cada vez mais importantes, isto é apesar das dificuldades representadas pelo deserto de Sahara que ocupa quase um terço do continente. O império de Mali[7] fundado pelo jovem mandinga Sundiata Keita conheceu um desenvolvimento notável com o seu sucessor Kanku Mussa, atestado pelos cientistas e viajantes da época, tinha integrado a escrita com o saber e o poder de civilização autóctone. Nos séculos XIII e XIV, a cidade de Tombuctu era a mais esclarecida que a maioria das cidades análogas da Europa. Escolarizada em árabe e em línguas subsaarianas. Ali lecionavam cientistas e professores de ensino superior que eram tão estimados no mundo da inteligência, tanto da África quanto do mundo árabe e da Europa, que os discípulos atravessavam o Sahara para ouvir os mestres de Tombuctu, Djenne e Gao.

A peregrinação de Kanku Mussa a Meca reabriu as fronteiras do Mali ao exterior, a partir deste fato histórico o Mansa (o rei) passou a receber embaixadores no seu império assinando acordos comerciais e político com os países do médio oriente. Era apenas para sublinhar que as relações da África com o resto do mundo não só começou na época moderna ou contemporânea, mas desde o período dos grandes impérios africanos.

A África começou a ser destruida no século XVI com a invasão dos povos do exterior, grandes intromissões com as “grandes descobertas” que em minha opinião não é uma descoberta, mas um “achado” da África ao sul do Sahara e da América latina. Essas descobertas levaram como todos sabem o trafico negreiro[8]. Este trafico custou dezenas de milhares de vidas aos africanos que foram arrancados e expedidos, em condições miseráveis para além do oceano atlântico. Nenhuma coletividade humana foi muito inferiorizada do que os negros depois do século XV.
O trafico de escravos foi o ponto de partida de desaceleração, um arrastamento, uma paragem da história africana. Se ignorarmos o que passou com o trafico dos negros, já mais compreenderemos nada sobre a África.


3-Período Colonial

A colonização foi à segunda forma de atrasar o desenvolvimento africano depois do trafico de escravos. Apesar de ser mais curta que o trafico de negros, mas foi mais determinante. O colonialismo substituiu por completo o sistema tradicional africano. Os africanos foram alienados, isto é, substituídos por outros, inclusive no seu passado. Os colonizadores fizeram ou prepararam um assalto à história africana. A África foi dividida, esquartejada na conferência de Berlim, realizada de 15 de Novembro de 1884 a 26 de fevereiro de 1885, com o papel de fornecer matérias-primas para os colonizadores. Esta exploração vigora até hoje com as novas idéias de globalização. Repara-se que durante a colonização[9] o sistema das relações era bipolar, apenas do colonizador com o colonizado, não havia o estreitamento de relações por parte dos países africanos com outras potencias. Por outras palavras podemos dizer que não havia Estados independentes em África o que possibilitaria a sua soberania e conseqüentemente o estreitamento dos laços de cooperação com outros países e outras organizações internacionais, simplesmente podemos dizer que este período era de submissão do povo africano aos colonizadores.

No campo político os africanos foram levados a combater contra o nazismo e o fascismo na Primeira e Segunda Guerra Mundial.

4-Período pós-colonial

Durante os anos noventa, a posição da África no mundo mudou profundamente. As relações bilaterais (bipolares) exclusivas com uma potência, antigas metrópoles coloniais ou bastião revolucionário desapareceram, ou seja, deu-se o fim do sistema bipolar de dependência da colônia a metrópole. Esta modificação operou-se a favor de multilateralização[10] das relações políticas, diplomáticas e econômicas. O poder dos países colonizadores, que dominavam a África desde os fins do século XIX foi posto em xeque. Apesar de continuar a ter as suas raízes, é abalada por novas forças: forças internas africanas e forças externas representadas pelas potências economicamente fortes, as multinacionais e as organizações internacionais. As organizações internacionais como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comercio (OMC), intervêm cada vez mais, eles não são dependentes dos países colonizadores. Em certos aspetos cooperam com esses países.

Do ponto de vista econômico, há uma espécie de nivelamento, de reciprocidade e reposicionamento geral de todos os atores na África, ou seja, todos os países europeus e essas instituições partem em igual posição quanto à cooperação com os países africanos. Nestes aspetos deu-se a multilateralização das relações dos países africanos com os países e as organizações internacionais em que nem sempre os ex-colonizadores são maiores beneficiários, mas que a todo custo tentam sempre manter as suas posições e os seus interesses. Os interesses destes países estão dissimulados nos interesses das empresas multinacionais que passam a ter o protogonismo na exploração dos recursos naturais africanos. As organizações internacionais e as multinacionais atuam cada vez mais no lugar dos Estados. A maioria dos conflitos em África deve-se ao fato da intervenção destas empresas multinacionais, financiando rebeliões armados no interior dos Estados africanos com o fito de tirar proveito no caso da vitória do seu aliado.

Do ponto de vista político e econômico, a África não poderá desenvolver enquanto continuar haver esse tipo de intervenção por parte dos países desenvolvidos.
Não podia terminar a minha comunicação sem antes de fazer uma critica a comunidade internacional quanto ao modo da sua intervenção ou atuação em África.

A comunidade internacional deve perceber antes de tudo, que os povos africanos foram vítimas históricas da globalização européia, desde os “descobrimentos” portugueses, para depois reconhecer que os danos causados pelas ações já postas em prática para “salvar a África” da guerra, da fome, dos regimes ditatoriais e etc. - só podem ser superados quando não houver mais, porque, em pleno século XXI, é inadmissível imaginar que os africanos são incapazes (jurídico-antropologicamente) de resolver os seus problemas. Enquanto houver uma mão européia a tentar guiar a África, ela sempre continuará a viver os seus problemas.

O Ocidente poderia ajudar o continente africano a enfrentar seus problemas através de uma série de políticas comprometidas com o desenvolvimento sustentável, mas não com as práticas atuais de usar discursos vazios de democracia, desenvolvimento e fornecer recursos “humanitários” limitados. Por outro lado, com tráfico de drogas, negócios sujos das multinacionais, como por exemplo, compra de diamantes de grupos terroristas. São esses problemas que continuam a alimentar guerras entre os povos africanos.

5-Conclusão:

A África é o continente mais fustigado pela ocupação européia, desde os descobrimentos que levou o trafico de negros, seguindo-se a colonização que permitiu a retirada das matérias-primas da África para o desenvolvimento das indústrias européias. A política em África é mal concebida devido que durante a colonização não permitiram os africanos participarem na administração dos seus territórios, destruindo de forma brutal as estruturas tradicionais horas existentes. Houve perda da consciência do Estado após a independência devido à instauração dos regimes ditatórios pelos partidos libertadores. Mas estamos convictos de que este paradigma vai mudar com as novas forças de cada país africano: “Se canua can cadja no na tchiga”. Crioulo da Guiné-Bissau.


6-REFERÊNCIAS

1-ANDRÉ de Carvalho Ramos. Direitos Humanos em Juízo. Comentários aos casos contenciosos e consultivos da Corte interamericana de Direitos Humanos, São Paulo, Ed. Max Limonad, 2001.

2-BAHIA, Saulo José Casali. Tratados Internacionais no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

3-KI-ZERBO, Joseph: Para quando a África? Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro, Pallas: 2006.

4-STRENGER, Irineu. Responsabilidade do dano em Direito Internacional privado, São Paulo: RT, 1973.
5-VISSCHER, Charles: de Théories et réalités em Droit International Public, 2ª Ed., Paris: Pédone, 1953.
6- Organização da Unidade Africana, http://www.infopedia.pt/$organizacao-de-unidade-africana-(oua).
Tratado de direito penal.
[1] Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Bissau (FDB), Mestrando em Direito Público (UFBA) e Promotor de Justiça da Guiné-Bissau.
[2] A Organização da Unidade Africana (OUA) foi criada a 25 de Maio de 1963 em Addis Abeba, Etiópia, por iniciativa do imperador Etíope Haile Selaissie através da assinatura da sua constituição por representantes de 32 governos de países africanos independentes. Foi substituída pela União Africana a 9 de julho de 2002. http://www.infopedia.pt/$organizacao-de-unidade-africana-(oua), acesso 22/05/2009.
[3] Estado é uma instituição organizada política, social e juridicamente, ocupando um território definido, reconhecida tanto interna como externamente. Um Estado soberano é sintetizado pela máxima um governo, um povo, um território. O Estado é responsável pela organização e pelo controle social, pois detem o monopólio legitimo do uso da força (coerção, especialmente a legal).
[4] STRENGER, Irineu. Responsabilidade do dano em Direito Internacional privado, São Paulo: RT, 1973.
[5] Independência é a disassociação de um ser em relação a outro, do qual pedendia ou era por ele dominado; É o estado de quem ou do que tem liberdade ou autonomia.
[6] KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África?: entrevista com René HOLENSTEIN. Rio de Janeiro: pallas, 2006, p.61.
[7] KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra, Vol.II, 1990.
[8] (...), depois do genocídio dos índios na América, o trafico custou à vida de dezenas de milhões de africanos, que foram arrancados a este continente e expedidos, em condições atrozes, para do Oceano Atlântico. (...) Foram encomendados escravos negros aos milhões; utilizaram-se os negros como produtores de outros negros, em “coudelarias” constituídas para produzir novos negrinhos para o trabalho nas plantações. Quantas crianças africanas foram jogadas dos navios, ou abandonadas nos mercados de escravos, longe das mães que eram levadas, porque era preciso muito tempo para alimentá-las até que fossem exploráveis?(KI-ZERBO, Joseph: Para quando a África? Entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro, Pallas: 2006 p.24).
[9] (...), O “pacto colonial” queria que os países africanos produzissem apenas produtos em bruto, matérias-primas a enviar para o Norte, para a indústria européia. A própria África foi aprisionada, dividida, esquartejada, sendo-lhe imposto esse papel: fornecer matérias-primas. Esse pacto colonial dura até hoje. Se analisarmos a balança comercial dos países africanos, veremos que 60% a 80% do valor das suas exportações são matérias-primas, para alguns deles, é o cobre, para outros é o bauxite, o urânio ou o algodão (KI-ZERBO, op.set.p.25).
[10] BAHIA, Saulo José Casali. Tratados Internacionais no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.24.

domingo, 28 de março de 2010

ACESSO À JUSTIÇA E O ORDENAMENTO JURÍDICO GUINEENSE

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE DIREITO
MESTRADO EM DIREITO PÚBLICO
Teoria Geral do Processo
Professor Wilson Alves

VICTOR INSALI

ACESSO À JUSTIÇA E O ORDENAMENTO JURÍDICO GUINEENSE.

Salvador
2008
Victor INSALI[1]*

Acesso à justiça e o Ordenamento Jurídico Guineense.

Resumo:

Acesso à justiça neste contexto atual, é um assunto incontornável, considerando a sua importância no domínio da efetivação dos direitos fundamentais. É uma preocupação de quase todos os países do mundo e dos estudiosos de direito em procurarem soluções que permitam reduzir obstáculos (tanto da legislação processual como nos meios de assistência judiciária gratuita) que impendem ao acesso de todos ao judiciário, considerando como causas fundamentais: a educação, a pobreza e a cultura. Este problema encontrou maior ênfase nos países pobres.
O judiciário guineense depara-se com inúmeras dificuldades no seu funcionamento para cumprir a sua missão de realizar uma verdadeira justiça para todos os cidadãos, dificuldades essas de ordem estrutural, legislativa, de recursos humanos etc. A par dos tribunais instituídos pelo poder político, é freqüente na Guiné o recurso de outras formas tradicionais (o costume) extrajudiciais não comuns àquelas permitidos na lei (arbitragem), os costumes tradicionais culturais (o Irã, o djambacós, etc.). A pobreza e o analfabetismo são também problemas que afetam a população guineense, principalmente a do interior.
Palavras-chave: Acesso à Justiça, problemas econômicos, ordenamento guineense.
Abstract:
Access to justice in this new current context, is something inevitable, considering its importance in the execution of fundamental rights. It is a concern of almost all countries in the world and scholars of law in seeking solutions to reduce barriers (both in terms of procedural legislation as a means of free assistance) that incumbent access for all to justice, taking as fundamental causes: education, poverty and culture. This problem has found greater emphasis on poor countries.
The Guinean judiciary is facing many difficulties in their operation to meet its mission to achieve a true justice for all citizens Guinean. Difficulties such an order structural, legal, human resources etc.. Alongside the courts established by political power, is common in Guinea the use of other forms extrajudicial not common those allowed by law (arbitration), traditional cultural forms. Poverty and illiteracy are also problems that affect the Guinean population, mainly from within.
Key- words: Access do justice, economical problems, Guinean judiciary

Sumário
1. Breve relato sobre o Problema de acesso à justiça; 2. O problema da Pobreza; 3. Problema educacional; 4. Pobreza na Guiné-Bissau; 5. Fator cultural; 6. O acesso à justiça e o ordenamento jurídico guineense; 7. Funcionalismo prático do sistema judiciário guineense; 8. Conclusões; 9. Referencias bibliográficas.

1. Breve relato sobre o problema de acesso à justiça

O homem, desde que apareceu na natureza, aprendeu a conviver em comunidade. Esta convivência na sociedade possibilita-lhe a satisfação das suas necessidades que, pelo visto são ilimitadas. A necessidade de o homem conviver em sociedade não só cria vantagens, como, por outro lado, gera conflitos. Esse fato, gerador de conflitos, cria a necessidade de ordenação da vida social através da criação de um mecanismo chamado poder e de um sistema jurídico disciplinador da vida social.

O Estado, enquanto poder ou autoridade deve garantir ao cidadão a segurança e a realização dos seus direitos, no caso de serem violados ou de serem ameaçados de violação, evitando assim o recurso à justiça privada. A jurisdição é um espaço ou sede criado pelo Estado com vista à resolução dos conflitos entre os cidadãos ou entre os cidadãos e o próprio estado.

O problema de acesso à justiça é um problema global, de todos os países do mundo, mas que tende a variar para mais ou para menos de acordo com os países em questão, tendo em conta a situação econômica, política, social e cultural e ainda de acordo com o nível do desenvolvimento das instituições democráticas.

Países como a Espanha, Itália, Estados Unidos, Canadá, etc., tendem a criar leis nos seus ordenamentos jurídicos com vista a reduzir os obstáculos que impedem o acesso à justiça, criando sistemas de assistência judiciária[2] gratuita aos cidadãos desfavorecidos. Este problema de acesso ao judiciário tem sido mais agravado nos países pobres, onde a pobreza e o analfabetismo assumem índices catastróficos. As condições de vida são péssimas, associadas ainda a fatores culturais que tem um papel determinante na moral dos povos. Mas, também, há que ressalvarmos um dado muito curioso e importante: nestes países, o acesso aos tribunais oficiais é reservado ao segundo plano, ou até mesmo é uma questão nula, porque eles têm ouras formas tradicionais (o costume) de resolução de conflitos que acham mais eficazes e mais céleres. Este é um dado evidente na maioria das tribos africano, em que cada um tem as suas formas especificas de resolução de conflitos fora do sistema legal do Estado.

Por acesso à justiça entende-se o acesso aos tribunais. O preâmbulo da Constituição da Guiné-Bissau[3] abriga a intenção de instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos e elege a justiça como um dos valores supremos de uma sociedade que se pretende fraterna e pluralista.

Segundo Prof. Canotilho, “se, por um lado, a defesa dos direitos[4] e o acesso de todos aos tribunais tem sido reiteradamente considerado como o coroamento do Estado de Direito, também, por outro lado, se acrescenta que a abertura da via judiciária é um direito fundamental formal”.

A propósito, o acesso à justiça não pode ser resumido ao simples acesso ao poder judiciário. Ele não se trata de simples gratuitidide universal no acesso aos tribunais, tão cara aos ideais românticos do individualismo liberal e que, por toda a parte, se tem, em absoluto, por utopia, mas a garantia, essa sim universal, de que a via judiciária estaria franqueada para defesa de todo e qualquer direito, tanto contra particulares, como contra poderes públicos, independentemente das condições econômicas, sociais e culturais de cada um, a prática do justo.

Segundo Prof. Wilson Alves [5]
O direito de acesso à justiça não se resume apenas em o cidadão ter portas abertas de entrada para o tribunal, mas significa também o direito a um devido processo legal, um processo carregado de garantias processuais, um processo justo, que termina num prazo mínimo razoável.

Ainda, é necessário que se produza uma decisão eficaz, não só para as partes em conflito, como também para toda a sociedade, visto que, uma das missões do direito é a realização de justiça, de garantir a paz e a segurança dos cidadãos. Na verdade, a prática do justo exige que eu saiba o que é justo para cada pessoa, ou melhor, que garanta a cada pessoa a proteção material de seus direitos, os quais são definidos por uma lei maior-formal (constituição), que define exigências ideológicas e racionalidade pré-determinadas das regras impostas.

A propósito do problema de acesso á justiça, serão analisadas algumas causas que, para nós, constituem obstáculos. São elas: a pobreza, o desconhecimento do direito e fator cultural. Este último de grande peso nos países africanos, conforme vamos abordar adiante.

2. O problema da Pobreza

Nos países ditos de terceiro mundo a pobreza constitui um obstáculo de grande peso para o acesso à justiça. A maior parte da população vive com menos de um dólar por dia. A miséria, a fome e as doenças constituem uma ameaça e inimigo terrível destes povos. A maior parte dos países africanos vive na instabilidade política e econômica, resultantes dos sucessivos conflitos armados, que têm caracterizado este continente nas ultimas décadas. Há guerras[6] que são apoiadas e sustentadas pelo trafico de armas e de drogas por organizações e companhias mineradoras multinacionais. Por vezes, elas não hesitam em suscitar rebeliões para enfraquecer o país com o qual negociam, porque elas podem intervir quando há adversário, o que lhes permite fazer chantagem. Mas se não houver rebeliões ficam enfraquecidas para negociar.

Por outro lado, os conflitos vividos pelos países africanos são resultantes da ambição de poder, que em muitos casos resultam das eleições mal organizadas. Tudo isso resulta da imposição do jogo democrático por parte da comunidade internacional a estes países, como forma de reestruturar a economia e relançar o desenvolvimento econômico através da alternância do poder que, até ali, estava entregue aos partidos libertadores da independência. É o caso do PAIGC na Guiné e Cabo-Verde, FRELIMO em Moçambique, MPLA em Angola, etc.

Essa democracia do modelo europeu não corresponde à realidade das estruturas tradicionais do poder destes países africanos, fato que torna difícil a absorção dos princípios do Estado democrático de direito e, conseqüentemente, o respeito pela dignidade da pessoa humana e da efetividade dos direitos fundamentais.

O acesso à justiça, nesses países, torna-se difícil para a maioria da população, devido à pobreza, ao analfabetismo e ainda à forma como o aparelho judiciário funciona. A justiça, em qualquer parte do mundo, acarreta custos ao acesso aos tribunais e estes custos nem sempre estão à altura de toda gente e nem sempre o Estado está em condições de assegurá-las para todos os seus cidadãos. E neste quadro o que seria de um pobre que não tivesse meios de sustento? O que seria dele para pagar uma custa do seu processo no tribunal, ou ainda para contratar um advogado para lhe dar assistência no processo?

3. Problema educacional

Consensualmente, foi reconhecido que a falta de conhecimento do direito e de mecanismos de atuação em caso de sua violação constituem maiores obstáculos ao acesso aos tribunais. Os cidadãos somente poderão usufruir a garantia formulada pela lei perante os tribunais, se a conhecerem e os seus direitos. Caso contrário, será letra morta a disposição constitucional que prevê que o estado prestará assistência judiciária integral aos necessitados, além de sucumbir o princípio da igualdade jurídica que rege que dentro de uma mesma condição jurídica todas as pessoas devem ser tratadas de forma igual, independentemente da desigualdade financeira ou econômica.

Segundo advertência de Prof. Canotilho[7], “[...] que sinceramente está convito de que a realização de justiça estará mais dependente da extensão do pensamento da igualdade material à ordem dos bens (patrimoniais e culturais) e ao “mundo do trabalho”, do que numa abstrata defesa de direitos [...]”.

Este pensamento de igualdade material entre as pessoas é difícil de se obter, visto que a própria natureza humana faz-nos diferenciar um do outro. No plano formal, busca-se essa igualdade só que é impossível obté-la no plano material.
O Direito à educação encontra-se inserido na constituição da República da Guiné-Bissau, no seu artigo 49º. A educação surge como área nobre e vital da intervenção protectiva do Estado e é, fundamentalmente, sob o prisma do ensino que o Estado se ocupa.
Mas a educação na Guiné-Bissau é o setor que vem se confrontando, ao longo dos anos pós independência, com variadíssimos problemas, alguns dos quais crônicos, cuja solução dependerá sempre de uma melhor visão e engajamento do governo.
Os objetivos estabelecidos pela convenção internacional sobre os direitos da criança (CDC) relativamente à educação, estão muito bem sintetizados no art. 16º da constituição.
Porém, a sua plena concretização só será possível quando, ao nível nacional, forem criadas condições mínimas para a adequação do sistema do ensino as realidades do país em termos de quantidade e qualidade.
Para além dos aspectos intrínsecos do sistema do ensino, é necessário que os princípios de respeito pelos direitos fundamentais, nomeadamente de solidariedade e de fraternidade, defendidos nos discursos políticos e consagrados na lei fundamental do país e nas convenções e pactos ratificados, sejam observados pelas diferentes instituições nacionais ou que as bases democráticas em que se assentam estes princípios sejam uma realidade.
A Guiné-Bissau é um país de índice de analfabetismo muito elevado quase 85% da população é analfabeta. O Estado não está em condições de dar educação a toda população; as escolas localizam-se mais nos centros urbanos e a maior parte da população do interior vive sem elas, ou, se existirem, são espécies de “barracas” sem a mínima condição para aprendizagem. Essa falta de instrução e de acesso ao saber científico impede que essa população conheça minimamente os seus direitos e deveres. Essa população vive somente dos seus costumes tradicionais e ignora totalmente a presença do Estado nessa localidade.

4. Pobreza na Guiné-Bissau

Segundo advertência de Prof. Canotilho, o ideal era procurar a igualdade material em todos os cidadãos, o que é, de fato, difícil de alcançar. O certo é que, nem sempre a falta de conhecimento do direito e de mecanismos de atuação levam a pessoa a não poder recorrer aos tribunais. Às vezes as dificuldades são de ordem financeira de poder arcar com elevados custos de entrada aos tribunais. A pobreza é também um dos maiores obstáculos ao acesso à justiça.

A Guiné-Bissau é um dos países que não escapou do fenômeno da pobreza em que vivem os chamados países do terceiro mundo, onde a fome e a miséria são o inimigo número um da população. Se levarmos em conta os relatórios das Nações Unidas sobre os índices da pobreza da população, será possível observar que, apesar de o país não se situar na linha da extrema pobreza[8], também não é dos melhores situados em termos de desenvolvimento humano. As condições de vida são das piores, a esperança de vida para os homens guineenses é de 40 a 45 anos e para as mulheres é de 45 a 50 anos.

Este diagnóstico mostra que o acesso à justiça na Guiné é limitado apenas a uma franja da população em condições de suportar as custas processuais e de pagar a assistência dos seus advogados , visto que o Estado não criou mecanismos de assistência judiciária gratuita para aquelas pessoas sem meios de suportar as custas processuais.

5. Fator cultural

O desenvolvimento econômico de um país é caracterizado pelo nível civilizacional da população, importância das infra-estruturas e o desenvolvimento tecnológico. Tudo isto tem a sua base num fator chamado cultura. Este fator desenvolveu-se mais nos países desenvolvidos através dos progressos da ciência e técnica, permitindo elevar o nível de vida e da mentalidade dos seus povos. Ao passo que nos países pobres ainda amarrados aos ideais da “cultura” e costumes tradicionais dos mistérios da vida, e que tudo se resolveria através de forças sobrenaturais e não através do progresso de trabalho e da técnica. Estes países continuaram a ver os seus progressos minados, continuando no subdesenvolvimento, dependentes e explorados pelos países desenvolvidos.

Este fator cultural tem muita influência numa outra vertente, no que concerne à instrução (ensino), pelo que, se pode observar no nível de algumas culturas africanas, particularmente, as ligadas à prática da religião muçulmana, em que os pais impedem que as suas filhas freqüentem a escola, como pretexto de não terem conhecimento igual ao do seu marido, uma vez que o papel da mulher nestas culturas é reservado unicamente aos trabalhos caseiros e obediência total ao marido. Pelo lado dos rapazes, a ambição de enriquecimento rápido e a idéia de se casar tão cedo impedem a freqüência escolar, uma vez que o tempo que levará a estudar seria um tempo totalmente perdido na busca de riqueza.

Na Guiné-Bissau, existe um pouco desta prática, mas o grande problema é a incapacidade do Estado de poder dar educação (ensino) a toda população do país.

6. O acesso à justiça e o ordenamento jurídico guineense

Nos países que pretendem trilhar o caminho da democracia e da construção de um verdadeiro Estado de Direito, os direitos humanos são um assunto incontornável. De outro ângulo, podemos dizer que qualquer processo de desenvolvimento está hoje ancorado à observância dos ditames mínimos que garantem o mínimo de dignidade à pessoa humana. Isso não se faz sem o conhecimento de como funcionam mecanismos supranacionais de garantia e proteção dos direitos humanos. Esta garantia e proteção dos direitos são efetivadas pelo princípio de acesso à justiça e da ampla defesa, por que o cidadão se sente protegido quando o próprio Estado cria meios e mecanismos de proteção aos seus direitos.

Se for verdade[9] que o Estado de Direito dos nossos dias pressupõe a existência de uma democracia, nem sempre a existência de instituições democráticas significa que o Estado que as adota seja um verdadeiro Estado de Direito; basta ter em conta que, pelo menos pontualmente, uma decisão pode ser democrática (isto é, provada por um órgão com legitimidade democrática e segundo procedimentos próprios da democracia, mas, no entanto, violar o princípio do estado de direito). Significa dizer que se uma maioria política, legitimada por eleições democráticas, governar sem o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos haverá democracia política, ou, pelo menos, instituições democráticas, mas não haverá o Estado de Direito (REIS NUVAIS:1996,p.7).

Esse trecho mostra como um determinado sistema jurídico pode ser baseado nos princípios do estado democrático de direito e as suas instituições não corresponderem a tal Estado. O ordenamento jurídico guineense é um ordenamento fechado, caótico, inflexível e arcaico que não oferece a mínima garantia aos cidadãos, impedindo o acesso à justiça aos menos favorecidos. O sistema judiciário guineense foi herdado do colonialismo português e até hoje sofreu poucas mudanças como vamos ver ao longo das diversas constituições do país.

A Constituição de 1973[10], conhecida também como constituição de Madina de Boé, (local da proclamação da independência), em termos de conteúdo, é uma constituição fortemente marcada, como não poderia deixar de ser, pelo contexto de luta de libertação nacional em que nasceu inspirado do modelo soviético, salvaguardava mais os princípios de anti-colonialismo, anti-neocolonialismo e anti-imperialismo. Em relação aos direitos fundamentais, fazia remissão expressa a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Não encontramos, nesta Constituição, nenhuma cláusula em que se expressam a funcionalidade do exercício dos direitos fundamentais e muito menos da proteção e do recurso dos cidadãos aos órgãos jurisdicionais em caso da violação dos seus direitos; se não vejamos: “a privação dos direitos políticos e liberdades fundamentais aos que pela sua ação atentem contra o princípio da unidade Guiné e Cabo-Verde”art.22º CRGB. Esta constituição visava apenas à defesa e privilégios dos chamados “mbá luta” (eu é que foi à luta de libertação). A grande preocupação do Estado neste período - a pós independência - não era com o cidadão comum, por exemplo, dar-lhe proteção e assistência, mas sim, primasiadamente, com abolição total com colonialismo e neocolonialismo.

A Constituição de 84[11], nascida com base num processo de ruptura situa-se materialmente na linha de continuidade da constituição de 1973. Contudo se verifica nela uma institucionalização mais sólida, desenvolvida e acabada, do tipo de Estado e do regime político que nasceram de luta anticolonial. Nela desaparece a referência à Declaração Universal dos Direitos do Homem, no mesmo sentido de uma inflexão autoritária da concepção dos direitos fundamentais, é introduzido um artigo que, de certa forma, desde que interpretado num contexto de constituição não liberal, funcionalista, condiciona o exercício dos direitos à conveniência do poder instituído.
Repare-se o art.31º - que corresponde ao art.35º da atual constituição - porventura com outro sentido neste novo contexto, segundo o qual “nenhum dos direitos e liberdades pode ser exercido, entre outros limites, contra os princípios e objetivos consagrados na constituição”. Uma cláusula deste tipo poderia inviabilizar, por exemplo, o exercício da liberdade de expressão, de reunião ou de associação, etc.

Do período que vai da constituição de 1973 à Constituição de 84, o país viveu numa situação de ditadura do partido único, partido libertador, que tinha toda a máquina opressiva. A Constituição vedava a constituição de outros partidos políticos e outros movimentos que inspiravam princípios opostos a este partido (PAIGC). A abertura democrática e a constituição de partidos políticos deu-se com a nova constituição de 1993[12], que fez cair o artigo 4º que vedava a constituição de partidos políticos.

A grande novidade sobre a proteção dos direitos fundamentais e, conseqüentemente, a consagração do princípio do acesso à justiça vem da constituição de 1991/93 que nos seus artigos 32 e 33 consagraram princípios de tutela jurisdicional dos direitos fundamentais (art.32º), segundo o qual todo o cidadão tem o direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os atos que violem os seus direitos fundamentais;

O princípio da responsabilidade civil do Estado por violações dos direitos fundamentais (art.33º). A última novidade e talvez de maior relevância que a constituição de 93 traz é a de conferir as normas de direitos fundamentais, uma proteção privilegiada no conjunto das normas constitucionais. A partir deste período é possível dizer que se fez na Guiné uma abertura democrática do Poder Judiciário, porque neste instante que o Estado se preocupou em abrir tribunais por todo o território nacional, permitindo donde estiver o cidadão ter acesso formal aos órgãos jurisdicionais, que até aqui se situavam apenas na capital (Bissau).

7. Funcionalismo prático do sistema judiciário guineense

Como havíamos pronunciado que o sistema judiciário guineense é um sistema caracterizado no seu modo de funcionamento como um sistema arcaico, lento, fechado e rígido, herdado do mosaico colonial, não favorecendo mínimas (garantias) aos cidadãos mais fracos ou que apenas serviu e continua a servir aquele grupo privilegiado do poder. Após a independência, a função jurisdicional estava a cargo em todo o país de dois tribunais, todos sediados na capital Bissau (Tribunal Regional e Supremo Tribunal de justiça) No resto do país, a função jurisdicional era entregue as sedes administrativas regionais e setoriais, (ditos em outras palavras comitê de Estado), polícias e comitês de tabancas. Atualmente o primeiro foi retirado parcialmente desta função, mas os dois últimos continuam até hoje a exercer esta função ainda com maior relevância.

A par destes órgãos outrora instituídos oficialmente para exercerem essa função, existe ainda um órgão fiticiamente em quase todas as culturas da Guiné que exerce essa função, que pela sua forma de celeridade e maior credibilidade as populações recorrem-lhe mais do que os próprios tribunais estatais. Trata-se de práticas culturais misteriosas que resolvem os conflitos através de poderes sobrenaturais (o Irã, e os djambacoses) ditos tradicionalmente pela língua crioula.

O Tribunal Regional e o Supremo Tribunal de Justiça funcionavam com poucos juízes formados em direito, dada à situação de carência dos profissionais formados nesta área. Este dado revela a insegurança, a lentidão e a proliferação de decisões injustas ou ilegais por parte destes juízes.

Além da carência do pessoal da magistratura formados em direito, ainda se verifica a falta de infra-estruturas em condições razoáveis para garantir o mínimo de funcionamento do expediente, sem deixar de lado o pessoal da secretaria e do material para o serviço de expediente. A tudo isto, acresce-se ainda a falta de meios para transferência dos detidos e de falta de instalações prisionais adequadas em condições de albergar os detidos.

Este ponto constitui o grande “handicap” do sistema judiciário guineense, porque de nada vale uma justiça que se resume apenas na interpretação e aplicação de leis, sem condições objetivas para punir os infratores. Parece caricato, mas é real, a Guiné-Bissau, em pleno século XXI, tecnicamente não possui nenhuma prisão neste momento, o que fomenta e incentiva a criminalidade e alimenta a impunidade.

Em 1996, o Estado decidiu abrir tribunais de pequenas causas por todo o território nacional, como forma de aproximar a justiça de todos os cidadãos e, da mesma forma, o Estado deparou-se com o problema da falta de profissionais formados nesta área. Para suprir esta lacuna, o Estado teve, através do apoio da Embaixada dos Estados Unidos (TIPS) e da Cooperação portuguesa por meio dos docentes da Faculdade de Direito de Bissau, de dar uma curta formação prática aos candidatos ao exercício da magistratura, apenas assegurando a vaga à medida que saiam juristas formados em direito, para substituir este pessoal.

Esta situação evidencia de forma clara como os tribunais guineenses são compostos, como funcionam e, ainda, como a função jurisdicional é exercida. A proliferação de decisões injustas, processos mal articulados, etc. sem falar da corrupção que tem abalado nestes últimos tempos com o tráfico de droga. Toda esta situação vem revelar o descrédito total do cidadão guineense no recurso a este órgão para a resolução do seu problema.

Outro problema que a sociedade guineense enfrenta é a falta de cultura de recurso ao tribunal, como órgão de resolução de conflito. As pessoas preferem recorrer à polícia, ou outros órgãos tradicionais de resolução de conflitos. A justiça policial, apesar de não obedecer aos critérios de tramitação processual, é mais célere, barata e recorrível pela maioria da população guineense; a população a credita mais na autoridade da policia do que no tribunal.

O Judiciário guineense enfrenta ainda outro problema, que talvez seja um dos problemas mais graves: a falta de colaboração entre os órgãos encarregadas de realizar a justiça, (o tribunal e a polícia). Não existe uma cooperação entre estas duas instituições que a princípio deveriam colaborar para que seja realizada uma verdadeira justiça. Como conseqüência: a ineficácia de execução de certas decisões e realização de certas diligências.

Outro dado curioso é a incapacidade ou falta de poder de autoridade para execução de certas decisões onde o poder tradicional tem mais força, acabando por impedir que uma decisão do tribunal seja executada.

Todos estes dados evidenciam a fragilidade de um sistema judiciário que sem meios e sem poder não consegue realizar a justiça que todo o cidadão guineense almeja. A forma mais comum de resolução de conflito na Guiné como foi dito em cima é por meio das praticas tradicionais (o costume-o Irã e o djambacós), se não digamos que estas práticas às vezes funcionam como tribunais de recurso, mesmo de uma decisão dos tribunais oficiais. Tribunal de recurso no sentido de que quando as partes não se conformarem com as decisões dos tribunais oficiais, recorrem a essas vias tradicionais para resolver o conflito. A justiça tradicional não só é célere, mas oferece maiores garantias aos cidadãos e mantem a estabilidade de convivência social. Cada grupo étnico tem a sua forma tradicional de resolução de conflitos, às vezes é por meio de conselho de anciões (a formas mais simples), ou através de processos misteriosos que só cada grupo étnico sabe explicar.
Não constitui segredo que a Guiné-Bissau, neste momento, está a contar com várias leis que regem a vida dos seus cidadãos, mas que já não acompanham a dinâmica e a evolução da sociedade, carecendo, assim, de revisões. Em alguns casos urge a criação de novas leis, para acompanhar, reajustando-as aos novos valores universalmente exigidos.
Os Códigos Penal e Processo Penal, Civil e Processo Civil, das Custas, e do Procedimento Administrativo são algumas das legislações que carecem de revisão, apesar dos grandes esforços do Instituto da Reforma Legislativa da Faculdade de Direito de Bissau em implementar a reforma dessas legislações sem contar com o apoio do governo.
Conclusões:
O problema de acesso à justiça é um problema sério que preocupa os estudiosos do direito em encontrarem mecanismos de sua solução, pós que em todos os países os cidadãos reclamam da falta de justiça ou de que ela é lenta, injusta e cara.
Nos países africanos o costume constitui uma fonte privilegiada de resolução de conflitos por via tradicional, ou seja, nestes países é mais freqüente o recurso às vias tradicionais de resolução de conflitos do que o recurso aos tribunais.
O judiciário guineense defronta com sérios problemas para atender a sua missão de realização de justiça para a população, falta de tribunais por todo o território nacional, falta de magistrados formados em direito, falta de prisões e sem falar da reforma das legislações que já não são adequadas à dinâmica da sociedade.

8. Referências

ALVES, Wilson: Acesso à Justiça e responsabilidade civil do estado por sua denegação: estudo comparativo entre o direito brasileiro e o direito português. Lumen Juris: 2008.

BEZERRA, Paulo César Santos: Acesso à Justiça, um problema ético-social no plano da realização do direito. 2ª Edição revista. Renovar: 2008

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e a teoria da constituição. 3ª Ed. Coimbra: Almedina, 1999.

GUINÉ-BISSAU, Constituição da República, 1973

GUINÉ-BISSAU, Constituição da República, 1984

GUINÉ-BISSAU, Constituição da República, 1993

GUINÉ-BISSAU, Documento Estratégico para a Erradicação da Pobreza na Guiné-Bissau (DENARP).
KI-ZERBO, Joseph: Para quando a África? Entrevista com René Holenstein. PALLAS, 2006.

REIS, Nuvais Jorge: Tópicos de ciência política e direito constitucional guineense. Associação Acadêmica, Faculdade de Direito de Lisboa, 1996.
[1] Graduação em Direito (FDB), Mestrando em Direito Público (UFBA) e Promotor de Justiça.


[2] BEZERRA, Paulo Cesar Santos: Acesso à Justiça. Um problema ético social no plano da realização do direito. SP. 2 º Ed. Renovar, 2008, p. 99-101.

[3] Constituição da República da Guiné-bissau-1993
[4] Canotilho, j.j.Gomes. op.cit,p25
[5] ALVES, Wilson: Acesso a Justiça. Tese final. Cap.I p.25-26
[6] KI-ZERBO, Joseph: Para quando a áfrica?Entrevista com René Holenstein, p.61.
A quase totalidade dos Estados subsaarianos orientou-se, durante a ultima década, para processos de democratização apoiados por políticas de independência e descentralização. Nos planos regional e sub-regional, foram feitos esforços de integração. De um modo geral, as populações aspiram a mais democracia, transparência, justiça e mobilidade. Mas essas transformações positivas são acompanhadas por evoluções contrárias ao fortalecimento das nações africanas e à promoção econômica, social e política das populações. Os golpes de Estados que afetaram vários países da áfrica, desde 1999-Niger, Serra Leoa, Ilhas Comores, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, ilustram o difícil enraizamento da democracia no continente. O Estado africano vive um problema fundamental de crise de governo.
[7] Canotilho, j.j.Gomes. op.cit,p.15.
[8] Documento de autoridades guineense, na luta e erradicação da pobreza. 2008
Nove em cada dez guineense vivem no limiar da pobreza, dispondo de um dólar ou menos por dia (0,83 euros), revela o Documento Estratégico para a Erradicação da Pobreza na Guiné-Bissau (DENARP). Segundo o documento, elaborado pelas autoridades guineenses, 88 por cento dos guineenses vivem no limiar da pobreza, situação considerada "alarmante" e que mais critica nas zonas rurais, afetando mais de 90 por cento da população, cuja taxa de analfabetismo atinge os 85 por cento.

[9] Reis, Nuvais Jorge, Tópicos de Ciência Política e Direito Constitucional Guineense. Lisboa, 1996 p.7
[10] Constituição guineense de 1973.
Aconstituição de 1973 é uma constituição relativamente curta (58 artigos) subdivididos nos quatro capítulos: Cap.I Sobre fundamentos e objetivos(arts.1º a10º);cap.II,sobre direitos,liberdades e deveres fundamentais(art.11º a 22º);cap.III sobre a organização do poder político(art.23º a56º);cap.IV, sobre a revisão constitucional(arts.57º e 58º).
[11] Constituição guineense de 1984
[12] Constituição da República da Guiné-bissau de 1993

FOTOS DA DEFESA DE MESTRADO - UFBA / BRASIL - 2010