sexta-feira, 22 de outubro de 2010

DA PUNIÇÃO À RESSOCIALIZAÇÃO VISTA SOB UM OLHAR DA SITUAÇÂO DO SISTEM PENITÊNCIÁRIO GUINEENSE

DA PUNIÇÃO À RESSOCIALIZAÇÃO VISTA SOB UM OLHAR DA SITUAÇÂO DO SISTEM PENITÊNCIÁRIO GUINEENSE
Victor INSALI
Docente na Universidade Lusófona da Guiné-Bissau
Cadeira: justiça e Reinserção Social
Promotor Público de Justiça

Ao iniciarmos o curso de direito, adentramos um universo novo, trazendo conosco antigas concepções que nos permitem interpretar o mundo à nossa volta. Dentre estes pré-conceitos, a vinculação de justiça ao poder punitivo do Estado sobre aqueles que violam as regras postas.
Qual o motivo, qual o fundamento originário? Resposta: o bombardeio, a que somos submetidos desde tenras idades, por noticiários que diariamente expõe condutas delituosas, de tal modo que os infratores são facilmente visualizados como inimigos da sociedade, sendo feita justiça com a efetiva punição dos delinqüentes a restrição de garantias constitucionais. Uma relação entre amigo/inimigo, não merecendo o anormal conviver com os normais, ou, pior, devendo receber tratamento desumano para “pagar” pelos seus crimes. Nesse diapasão, a sociedade civil, que inflada pelos meios de comunicação está sempre no afã de ver um endurecimento das leis penais, deve re-pensar a finalidade do direito penal, bem como a situação posterior à imputação e condenação, em que ocorrerá o cumprimento da pena.
No intróito da história ocidental (como bem lembra Tercio Sampaio Ferraz Junior, no seu livro Estudos de Filosofia do Direito, Tania Blixen retrata que os Kikuyus, no Quênia, “não teriam nenhum sentido para as noções de justiça e pena, ao menos no sentido ocidental que elas assumem (...), o dano deve ser indenizado”.Não se encontra, “entre esses primitivos, nenhum ‘olho por olho, dente por dente’. Não há pena no sentido criminal. Apenas num sentido civil”), o direito penal se limitava a punir, representando uma vingança desmedida, sem objetivação alguma que não fosse infligir sofrimento físico-exterior ao criminoso.

A partir do surgimento das instituições disciplinares, e com o alvorecer da sociedade de controle, oparadigma do poder político tornou-se re-situar o indivíduo na sociedade, normalizando-o, padronizando seu comportamento. Percebe-se, assim, que o direito penal, que remetia, apenas e tão-somente, à imputação de uma sanção a uma conduta enquadradada em um tipo penal, passa a almejar um fim social, que seria aressocialização, a normalização. Desse modo, torna-se conditio sine qua non lembrar do filme Laranja Mecânica de Stanley Kubrick para perceber como a punição deixou de significar, de um modo geral, violência física para simbolizar destruição psicológica, fisiológica-interior, na qual um espírito é amputado, com a supressão ou limitação de seus instintos mais básicos, por meio de um método pavloviano, como bem mostrado na cena em que Alex, impassível, é espancado ou mostra-se impotente frente a qualquer desejo carnal.

Destarte fica evidente que nenhum dos atuais fins do direito penal seja o apregoado pela mídia, seja o proposto pelos juristas, foge à simples “fratura binária da sociedade em uma raça e em uma sub-raça”foucaultiana, ou da relação amigo/inimigo schmittiana, que são arcabouços pressupositivos para ambos os escopos penalistas em voga, quais sejam, a ressocialização e a punição.

Nas palavras de Foucault, registradas no livro Em Defesa da Sociedade, quando as instituições e os titulares da norma fazem o discurso da luta de raças, há o funcionamento dessa propagada dicotomia como“princípio de eliminação, segregação e, finalmente, de normalização da sociedade”.

Se antes se punia o corpo, por vezes atingindo-se a alma, atualmente a palavra de ordem é normalizar por meio de instituições para re-inserir. Todavia, mesmo que essa seja a máxima propugnada pelos cultores do direito, a freqüente violação de direitos humanos (pelos países tidos como referência para as emergentes democracias ocidentalizadas) apenas ressalta a punição ainda vigente como política de Estado.

Na Guiné-Bissau, por falta de condições materiais (tais como penitenciárias e casas de detenção amplas, bem equipadas, em quantidade suficiente para abrigar a população carcerária, pessoal capacitado etc.), devido à incapacidade dos poderes manifestamente políticos, vemos o acúmulo de um grande número de presidiários em celas minúsculas, situação comum em todo o país, impossibilitando qualquer tipo de ressocialização.

Apesar da doutrina garantista ser ensinada nas Faculdades de Direito, não existem condições reais, neste momento, em nosso país, para que se concretizem todas as proposições humanizadoras advindas de penalistas com maior discernimento dos problemas sociais que afligem a sociedade guineense. Devemos, dessa forma, lutar por políticas públicas que instaurem um passo além da punição, colocando em prática um direito penal mais humano, retirando-o do campo estritamente teórico.Mesmo buscando a efetivação do re-socializar, não podemos fugir da problemática: a re-socialização não seria, também, um reflexo da relação amigo/inimigo? Sim. É inconteste que em todas as sociedades existe a distinção amigo/inimigo, inerentemente à condição humana, conforme Carl Schmitt. Unimo-nos em grupos justamente porque enxergamos semelhantes e nos afastamos daqueles que vemos como diferentes. Entretanto, a diferença entre os dois supracitados fins do direito penal reside no fato de que na ressocialização o diferente é visto como alguém que pode ser re-inserido (embora quem tenha passado pelo sistema carcerário seja estigmatizado pela sociedade civil), enquanto que com a punição há o escopo de impingir sofrimento. Ambos constituem a imposição de uma violência, no entanto aquela que se mostra menos desumana,“jusnaturalistamente”, é a ressocialização.

Assim, primeiramente, dentre dois objetivos diversos para aplicar-se o direito penal, deve-se adotar aquele que possibilita uma nova chance para o delinqüente, ou seja, a ressocialização como fim primeiro do penalismo. Em um segundo momento, já visando garantir uma re-inserção, far-se-á necessário possibilitar meios para que o indivíduo consiga se aprimorar profissionalmente e intelectualmente dentro do cárcere. Ou seja, o caminho a ser trilhado já existe, basta apenas a adoção pelos políticos de algum modus operandi que seja eficiente e isento de qualquer vinculação a uma ideologia do direito penal máximo pregado pelos meios de comunicação, pois, até o momento, impera o caos da mídia, da ineficiência administrativa e da desumanização do direito.